Publicado em 18 de julho de 2009
Desde pequeno eu ouço falar que “médico não pode ter nojo das coisas”. Tem até aquela velha piada do professor de Medicina que introduziu o dedo no orifício posterior do tubo digestivo de um cadáver diante dos estudantes e disse: “Todo médico tem que ter estômago forte e ser bom observador” e colocou o dedo na própria boca. Convocou, então, os pobres discípulos a repetir o ato e todos o fizeram pra garantir a nota. Muitos vomitaram, outros engulharam e alguns fizeram cara de indiferentes (pra tirar uma ondinha). Depois do sofrimento, o professor disse: “Vocês têm estômago forte, mas não são bons observadores, pois eu introduzi o dedo indicador e coloquei na boca o dedo médio”. A profissão já me fez colocar o dedo em vários locais desagradáveis, mas sempre com luva e nunca, nunquinha mesmo, coloquei nada na boca (deusolivre!).
Se você ficou enojado com a piadinha do primeiro parágrafo, recomendo que pare a leitura e vá ler outra coluna do site. A partir de agora, é ladeira abaixo. Já passei por muito sufoco devido a odores fétidos. Isso começou ainda no primeiro ano de faculdade, quando nos deparamos com a sala de peças anatômicas (pedaço de gente morta). Juro que não tive nojo dos braços, pernas e tórax abertos expondo músculos, vasos e vísceras, pois, como tudo estava conservado em formol, o cheiro era pouco desagradável e parecia um salão de beleza com umas vinte mulheres fazendo escova progressiva ao mesmo tempo. Era como estudar com bonecos de borracha. O nojo mesmo foi no final do semestre, quando o professor nos levou pra ver cadáveres frescos no IML. Garanto que não sou do tipo de fazer careta pra qualquer cheirinho. Desde pequeno faço piada com porcarias e nojeiras só pra ver o povo fazer aquele “eca!” sonoro, mas quando abriram um corpo de um mendigo que foi achado morto dias antes em uma sarjeta e o cheiro de metano subiu, a coisa ficou feia pro meu lado. Parecia que um elefante com diarreia tinha resolvido se aliviar ali mesmo! Nunca senti um odor tão pútrido em toda minha vida! Junte isso à visão das vísceras intestinais saltando do abdome aberto, cheias de gazes como bexigas compridas (daquelas que fazem cachorro, chapéu, espada…). Visão do inferno total!
Andando mais um pouco na minha vida acadêmica, chegamos ao estágio no Hospital Geral do Estado (HGE), que é a principal emergência da Bahia. Logo que você entra no plantão, é calorosamente recebido pelo odor característico de “sangue + fezes + vômito + iodo”. É um cheiro peculiar que só tem lá e que, na época de estudante, eu pensava em patentear e criar uma medicação emética (que provoca vômitos). Seria um sucesso entre as bulímicas. Depois de encarar um Big Mac, era só dar uma cheiradinha no vidrinho de Eau du HGE e vinha o “Raul” na certa! Melhor de tudo é quando você dá plantão em pleno Carnaval, perdendo a festa, tendo que suturar a cara de um bêbado que se cortou durante uma briga e o miserável vomita no seu jaleco e em todo material estéril do kit de sutura. Repense seu vestibular, amigo!
Já na vida profissional, os cheiros são mais aceitáveis. Morando no interior, o mais frequente é o famoso cecê. Entenda o porquê: uma paciente moradora da zona rural de uma cidade vizinha a Amargosa acorda às 5 da manhã e, como está frio e não tem chuveiro elétrico, banho já era! Anda uma légua e meia (cerca de 9 quilômetros) até a zona urbana pra pegar um carro (provavelmente superlotado) até Amargosa pra fazer uma ultrassonografia mamária, mas, antes de ir à clínica, aproveita que está em uma cidade maior que a sua e vai bater perna no comércio, dá uma olhada nas lojas de roupas, sapatarias, farmácias, faz uma fezinha na lotérica e, às 12 horas e 40°C, resolve finalmente fazer seu exame. Ao deitar na maca, já com o roupão, a primeira coisa que o médico pede é que ela coloque a mão atrás da cabeça. Essa é a hora de reavaliar a interpretação do termo catinga. Mas como a paciente está ali, olhando o médico, ele mantém o sorriso e continua o exame como se não houvesse cheiro algum. Agora, volte ao início do parágrafo e imagine se a paciente fosse fazer uma ultrassonografia transvaginal. Juro por Deus que parece uma peixaria no final do expediente de um dia quente de verão e com o freezer quebrado. O bafo é tão forte que você sente um calorzinho na mão durante o exame.
Outro odor comum é o flato desproposital, vulgo pum que escapou. É difícil, às vezes, depois de comer aquela feijoada, ficar sentado na sala de espera e conter os inevitáveis gases intestinais. O pior é que na sala você fica constrangido com os outros pacientes e, no consultório, pega mal soltar um na frente do doutor. Que situação! Geralmente os jovens conseguem segurar a onda, mas os idosos (pobrezinhos) já não têm mais aquele tônus muscular no esfíncter anal. Uma vez, ao fazer um ultrassom do abdome total numa paciente idosa, pedi pra que ela virasse de lado (para examinar o rim) e, com o movimento, acabou soltando os gases bem na minha cara. O esposo dela (também com idade bem avançada), que acompanhava o exame, ficou olhando para mim e minha auxiliar para verificar nossa reação. Eu apenas respondi ao “desculpa doutor” com um simpático “não foi nada, acontece”. Já minha assistente, digitando o laudo no computador, concentrou-se em seu jogo de paciência como se estivesse jogando xadrez contra o Deep Fritz. O bom é que ninguém riu e a paciente saiu satisfeita.
Algumas vezes somos surpreendidos com algo mais substancioso que um simples pum. Em certa ocasião, estava eu em uma clínica em Mutuípe (cidade vizinha a Amargosa) fazendo uma ultrassonografia da próstata (pelo abdome, e não a transretal). Nesta época eu usava um foco clínico (esse aparelhinho na foto ao lado) como luz indireta (a sala fica apagada durante o exame), que era ligado ao mesmo no break onde estavam conectados o ultrassom e a impressora. O paciente apresentava-se meio inquieto antes de iniciar o procedimento e até questionei se estava se sentindo bem, no que ele me disse que sim, que só queria fazer logo o exame. Pois bem, como o aparelho estava muito próximo à cabeça do paciente (tinha acabado de fazer uma tireoide), puxei o carrinho do ultrassom para o nível da pelve e o plugue do no break soltou-se da tomada. De repente, tudo ficou escuro e o barulhinho do ventilador do aparelho cessou. Naquela completa escuridão silenciosa ouviu-se a voz do paciente assustado: “Oh, meu Deus, me caguei todo!” A agonia no início do exame era uma diarreia. Pedi pra que ele fosse ao sanitário, mas ele insistiu em fazer logo o exame e levantar de uma vez só. Como o cliente tem sempre razão, realizei o procedimento com cheirinho de merda no ar e, ao final, ele foi ao sanitário do consultório e através da porta eu ouvi: “A cueca está imprestável!”. Pedi licença, disse que o deixaria à vontade, saí e fui digitar o laudo em outra sala.
Cheiros, fedores, repugnâncias em geral fazem parte da minha rotina, mas sei que não estaria feliz em outra profissão qualquer. Afinal, que outro labor me daria o prazer de colocar essa cara de nojo em vocês todos? Até a próxima.
Caramba Dr. Tapioca… Deve ser bem dificil essa vida de médico. Acho que foi por essas e outras que eu acabei virando WebDeveloper… ^^
Bem… Boa sorte com os exames e as diárreias. hahahahaha…
Primeira vez que venho aqui e tu já vem com esse papo fedorento… hehehehe brincadeira não, os cheiros do hospital só mesmo prá estomagos fortes! Quando trabalhava em hospital o pior cheiro que senti foi de melena arghhhhhhh e também não fica atrás as úlceras de decúbito (sem falar no impacto visual). No ítem "higiene pessoal" também foi flórida… trabalhei num hospital aqui onde moro (norte da itália) e no inverno, quando as pessoas ficam dias sem tomar banho me davam nojo até alguns médicos que mal se moviam emanavam um odor que podia fazer concorrencia ao seu Eau du HGE…
De qualquer jeito, saí fora do ambiente: agora tenho uma lavanderia e só sinto fedor de roupa suja (algumas que nem te conto). Um abraço!
Vini,fiquei com muita pena de você.Estou enjoada até agora….Bjs da tia pelo coração.
Eeeecaaaaaaaaaa, que nojo! Tenho certeza que jamais seria doutor. Deus me perdoe pode até ser desumano,mais sentir fedor,nunquinha. Continue sentindo seus odores pelo resto da vida, quem mandou ser DOUTOR? Um grande beijo.
Que horror.Nunca imaginei que fosse assim.
Ahhhh, to doida pra passar por isso tudo, se é que me entende! :D
Ei, Dr. Kico! Todas essas experiências são "tristes", mas suportá-las é a absoluta certeza de que esta é a sua vocaçõa. Quando lí a do velho que fez o serviço na cueca, quando a luz apagou, lembrei de como Lafa iria sorrir…
Cada vez mais o Dr. Tapioca escreve com humor e sabedoria. Parabéns! Além de médico um ótimo contador de histórias.
Texto muito fraco .Tentou ser engraçado ?
eu sei que não se deve rir da desgraça alheia, mas é muito engraçado ver esse lado NADA GLAMOUROSO da profissão!
Médico também é gente e caga e peida como todo cidadão!
E lógico que sente nojo também!
Experimente instalar um ionizador de ar no seu consultório… ele irá neutralizar os odores. Funciona mesmo! Bom post!
E eu sei como é isso. Eu sou medico veterinário e nao tem nada melhor que um cão com miiase (bicheira), no anus, com milhares de larvas de moscas subindo e descendo. O cheiro e inesquecivel.
É trágico mas é cômico. Ao contrário do que falou o invejoso aí de cima, ri em vários momentos do seu texto. E lembrei da época em que eu "caçava defunto" como repórter policial de um jornal sensacionalista. Numa noite encontramos um corpo que estava apodrecido há pelo menos três dias num buraco. Havia chovido, por isso o fedor era ainda mais insuportável. Aí, um popular curioso que acompanhava a retirada do corpo pediu um emprego ao policial do IML: "É que eu não sinto cheiro, doutor", disse o popular.
Mandrey, algumas vezes tenho inveja desse referido popular. Fico feliz que o texto tenha agradado e que receba comentários até hoje. Tentarei melhorar cada vez mais.
Dr. Tapioca, o senhor ficou famoso mesmo heim, depois que saiu daquela tranquilidade do Parque de Manutenção heim! Grande abraço meu camarada!
realmente isso é nojento,mas eu gosto de medicina tenho um estômago forte não tenho nojo…
Isso me lembra minha ex esposa, que um dia foi fazer exame de colonoscopia e assim que o médico introduziu o aparelho para fazer o exame ela cagou na mão dele. Não havia feito uma limpeza intestinal adequada, e passou a maior vergonha. E o médico então, teve que lavar as mãos e aguentar o mal cheiro. Eu rachei de rir quando ela me contou. Ossos do ofício.