Publicado em 12 de fevereiro de 2011
Acordo às 5 da manhã e lembro que hoje é dia de ir ao médico. Tomo banho rapidinho e coloco uma roupa mais arrumada. Tem que colocar calça pra ver o doutor, né? Penso se devo ou não tomar café e decido por sair em jejum. Vai que ele pede algum exame, eu já faço logo pra não ter que voltar lá outro dia.
Ando até o centro do vilarejo para pegar a condução para a cidade. No caminho, a brisa matinal, o cheiro de capim molhado e os primeiros raios de Sol por trás da colina são meus companheiros. Ouço o despertar rotineiro da roça: mugido de bois, galos cacarejando e uma cacofonia de piados de tudo quanto é tipo de passarinho. Consigo identificar cada um deles, mas acho mais divertido ouvi-los todos juntos formando um som novo e diferente.
Através da serração vejo o ônibus parado no centro da vila, próximo à igrejinha. Reencontro meus vizinho e amigos, cada um deles com seu motivo específico para ir à cidade hoje. Muitos vão vender o que produzem (feijão, andu, milho, farinha…), alguns vão ao comércio fazer compras e outros, como eu, vão ao médico. A viagem é rápida, geralmente não dura mais que 40 minutos, a depender das condições da estrada. Para meu azar, e dos outros também, o motor quebra e ficamos mais de uma hora parados enquanto aguardamos outro meio de continuar a viagem. Todos se decepcionam ao ver que o transporte opcional fornecido se trata de um caminhão e temos que ir amontoados na carreta junto com a carga, que no ônibus iria no bagageiro. Alguém agradece a Deus por ninguém ter trazido galinha ou porco e todos riem, mesmo dentro de um pau-de-arara armengado como aquele.
Depois de muito sacolejo e de dividir o suor com os outros, chegamos ao centro da cidade. Vou até a clínica e, devido ao atraso, pego a última senha, já que o atendimento é por ordem de chegada. A recepcionista explica que tentaram fazer por hora marcada, mas o desentendimento entre hora de chegada e hora da consulta criava um problema para a clínica. Tinha gente que chegava às oito, tinha marcado às onze e queria ser atendida logo, aí não pode, né? Eu prefiro assim, quem chega primeiro é atendido logo e que chega por último tem que esperar. Acho mais fácil e mais justo. Pena que eu vou perder o ônibus de volta, que sai às 11 e meia. Vou ter que dar um jeito de voltar pra casa depois, agora o importante é passar pelo médico.
Após esperar umas duas horas, chega minha vez. Eu adoro esse médico! Mesmo cansado e depois de tanta gente, ele ainda me recebe com um sorriso no rosto e pede desculpas pela demora. Outra coisa, ele explica tudo de forma fácil, sem usar aqueles “palavrões” que os outros médicos adoram como dislipidemia e hiperplasia prostática. Com ele eu sei exatamente o que tenho e se é grave ou não. Após me consultar e examinar ele decide que não há necessidade de realizar exames, pois meu último check-up está recente e o que eu estava sentindo ele resolveria rapidamente com uma medicação. Ele ainda disse que esse negócio de fazer exame toda hora é coisa de gente rica e, se o médico não pede, eles acham ruim. Deus me livre! Pra mim, médico bom é assim, consulta e examina, se precisar tirar sangue, tira, senão, passa o remédio e acabou a história.
Saio satisfeito da clínica e vou para a farmácia, mas antes passo na padaria para levar o pão pra casa e fazer uma boquinha, pois a fome tá apertando demais! Já passa da uma da tarde e não tem mais ônibus para a zona rural. O jeito é fretar um carro de praça, mas o problema é que nem todos gostam de fazer viagem para a roça, dizem que é muito longe, suja o carro todo, demora muito e poderiam fazer viagens mais curtas que valem mais a pena. Tive que pagar mais caro para poder convencer o motorista a me deixar no vilarejo, pois não tem estrada até minha casa, só um caminho estreito.
Chego na vila por volta das duas e, com o Sol de rachar, começo a caminhar de volta para casa vendo a beleza das montanhas verdinhas contrastando com o azul do céu sem nuvens. O gado pastando tranquilamente nas encostas, as crianças brincando no açude para espantar o calor e os cachorros correndo atrás das galinhas para que não fujam. Ouço ao longe o canto de um gavião planando baixo à procura de sua presa. De repente, uma leve brisa traz o cheiro de café sendo torrado e percebo que já estou perto. Muita gente diz que é trabalhoso demais morar na roça e ter que se deslocar pra cidade quando se precisa de alguma coisa, mas eu não saio daqui por nada nesse mundo!
Belo texto Dr. Tapioca.
Esse texto me faz lembra do meu avô e do meu pai que nasceram na roça. Ao contrario do personagem dessa historia, o meu avô não gostava de jeito nenhum de ir ao médico e se orgulhava de nunca ter ido. Um dia teve que ir e descobriu que tinha um câncer avançado no cérebro.
Vidão na roça é maneiro, eu já morei um tempo na fazenda quando era pequeno e a casa de lá nem tinha energia elétrica, era serpentina no fogão a lenha para ter banho quente e lampião para enxergar a noite. Na hora de dormir meu pai contava uma história do Jeca Tatu e a gente pegava no sono. Era difícil, mas eu tenho saudade daquele tempo.
Não era só teu avô que não gostava de médico, Atur. Aqui muita gente é assim também. Já perdi a conta de quantos homens só descobriram o câncer de próstata quando já era muito tarde.
Por isso é tão importante o trabalho de "educação em saúde" que fazemos continuamente para tentar conscientizar a população sobre os riscos e como evitá-los.
Só quem tem raízes como as suas, é capaz de narrar com tanta autenticidade a realidade do "Matuto". Acredite, viagei na sua viagem; vivi as emoçoes, escutei o canto dos pássaros, sentí o cheiro do capim, do café, contemplei a natureza e deixei-me envolver pela brisa suave… Perfeito! Parabéns e Deus lhe abençoe.
Conheço muito bem esse médico que atende e é tão atencioso com o,MATUTO. Que Deus conserve esse Dotô do jeitinho de sempre. Um beijo.
A cronica “matuto vai ao médico” reportou-me aos bons, queridos e velhos tempos de menino em São Gonçalo, quando aos sábados chegavam as caravanas das zonas rurais para a tradicional feira e também as visitas aos médicos. E eu, da janela, vendo o vai e vem das carroças, dos cavalos e até mesmo dos carros que faziam linha para os vilarejos. Seu tio Amando encaixa-se perfeitamente na figura. Adora a terra, o cheiro do mato e principalmente andar apreciando e elogiando a paisagem. E apesar dos 93 anos nunca se cansa, como também não se cansa de dizer como no final da crônica: eu não saio daqui por nada nesse mundo!. Abraços e boa semana. Luiz Tadeu
Que delícia, Vinnie!
Saudade dessa vidinha simples… saudades de vcs…
Adorei!
Bjs
Adorei! realmente realista, algumas palavras que matutos não usariam mas foram bem aplicadas. parabéns.