H.G.Eca (os odores e sabores de um plantão de emergência)

Vinicius Tapioca
@DrTapioca

Publicado em 21 de maio de 2012

Janeiro de 1997, domingo quente de verão, por volta das 19h, chego ao HGE (Hospital Geral do Estado) para meu primeiro dia de estágio no maior hospital de emergências da Bahia. Estava no quarto ano de faculdade e obviamente fui de carona para não chegar sozinho. Após estacionarmos, eu e meus caros colegas olhamos para a fachada imponente do grande hospital que nos fita de volta com ar ameaçador, quase posso ouvi-lo dizer: “Decifra-me ou devoro-te!”. Respiramos fundo e nos dirigimos à entrada principal, onde outros colegas (alguns conhecidos, outros não) também aguardam para adentrar os grandes portões de metal. Mas aguardam o quê? Um convite? Coragem? Um empurrão? Eu diria que as três opções. Um deles, mais corajoso (ou mais maluco, talvez) diz: “Vamos gente, todo mundo passa por isso e sobrevive, por que não nós?” e nos arrasta para dentro da garganta do dragão.

Nos corredores da emergência somos recebidos pelo odor característico do local (uma mistura de sangue, iodo e carne podre), ele acerta nossas narinas como um soco e é inevitável a “cara de fedor” dos novatos. Ouço um maqueiro dizer: “Chegou carne nova, esse plantão vai ser divertido”. Uma colega minha, já segurando minha mão, me olha com cara de “me tira daqui, pelo amor de Deus”. Vamos direto ao Conforto Médico onde deverá estar a relação com nossos nomes e o setor que cada um vai ficar. Devo dizer que o termo “conforto” foi muito mal empregado para batizar aquela sala minúscula, com um banheiro fedorento (unisex), um sofá desbotado com manchas que prefiro não saber do que eram, duro como um pau (na verdade a espuma já estava tão desgastada que realmente sentávamos no “pau” da armação) e uma TV de 14 polegadas que ficava alta demais para alguém mudar de canal ou mexer no volume (controle remoto? Sério, você pensou nisso? Pobre coitado!).

A sala também tinha uma mesa de centro com o jornal do dia (e de mais três ou quatro dias anteriores) e outro sofá tipo baú (daquele que se levanta o assento e guarda coisas dentro dele – nunca soube o que tinha lá), nele se encontrava um senhor gordo, grisalho e barbudo, com o bigode amarelado, revelando seu hábito tabagista, vestindo uma roupa de centro cirúrgico amarrotada (aquele pijama azul) deitado sobre um colchonete estampado estrategicamente colocado sobre o estofamento, assistindo à TV sem se preocupar com aquele rebanho de estudantes com seus jalecos impecavelmente brancos que acabara de entrar na sala, na verdade, parecia que nem estávamos lá. “Quem é esse cara?” – pergunto a um colega, “deve ser anestesista” – ele me cochicha de volta (colegas anestesistas, um beijo no coração!).

A lista estava afixada em um quadro de cortiça, ao lado da porta do banheiro, junto com propagandas de cursos de especialização e informativos do Sindmed. O estágio é dividido em quatro setores: Clínica Médica, Pediatria, Sala de Sutura e Ortotrauma. Cada estudante passa três meses em cada setor, revezando no esquema de rodízio.

Fui escalado inicialmente para a Sala de Sutura. Que ótimo! Logo eu, um clínico inveterado, apaixonado pela arte investigativa da anamnese e exame físico. Nada me alegra mais que um paciente chegar cheio de dúvidas e preocupações, sem saber o que o acomete, me fornecer pistas e sinais que eu analiso como um detetive e respondo: “foi o Coronel Mostarda, na biblioteca, com o castiçal”.

Sempre odiei cirurgia, gosto dos meus clientes inteiros e sem cortes, mesmo assim, lá estava eu condenado a passar três meses no antro dos cirurgiões. Dava pra ver que alguns colegas me olhavam com inveja, pois não suportavam a “chatice” da clínica médica, gostavam mesmo era de ação, de meter a mão na massa e isso se fazia na Sala de Sutura, na qual adentrei com minha maleta na mão, ao lado de dois colegas (um conhecido e outro não) também sentenciados ao centro de costura.

Chegando lá nos deparamos com um grande salão pintado com tinta óleo de tom amarelado, com macas dispostas perpendicularmente às paredes laterais, colocadas lado a lado (cerca de seis ou sete de cada lado), formando um corredor central que divide o espaço longitudinalmente. Próximo a cada maca há uma pequena mesa quadrada de metal com cerca de 30 cm de lado que serve para colocar o material de sutura (pinças, tesoura, porta-fio, etc). Alguns estudantes mais graduados, provavelmente do 5º e 6º anos, já estão diante dos pacientes, suturando. As macas estavam todas ocupadas e a quantidade de gente em pé ou sentada em cadeiras na porta da sala denota que já há fila de espera pra “levar ponto”.

No final do corredor, ao fundo da sala, nota-se um balcão de fórmica amarelada que serve para as prescrições e lá vemos um “médico” alto, muito branco (incomum para uma cidade praiana como Salvador), com cabelos castanhos escuros, um pouco acima do peso, de braços cruzados nos olhando seriamente como um rei que espera que os súditos cheguem até ele e se curvem em sinal de respeito. “Deve ser o cirurgião responsável pela sala” – pensamos, mas parecia jovem demais (não devia ter mais de 30). Dessa vez fui eu o primeiro a falar: “Olá, doutor, somos quarto-anistas e fomos escalados para este setor”. “Vocês sabem suturar?” – pergunta ele. Fazemos que sim com a cabeça, mas ele sorri e diz: “Isso nós vamos ver. Abram suas maletas e peguem uma caneta, o resto, podem deixar lá no Conforto Médico, pois não vão precisar”. Olhamos um para o outro e executamos o comando dado, deixando a maleta no Conforto, mas não peguei só a caneta, fiz questão de pendurar meu estetoscópio no pescoço, me sinto nu sem ele.

Voltamos ao covil dos cirurgiões e já da porta o “médico” que nos recebeu decide nos separar em duplas, porém somos 03, “então o Mané do estetoscópio fica comigo” – diz ele (que ótimo!). Dirigimos-nos a uma das macas, a sutura é simples, corte na planta do pé, o bom é que se não ficar bonito o sapato esconde. Sigo passo a passo o que aprendi nas aulas de técnica cirúrgica e faço o melhor que eu posso. O chefe me parabeniza: “Bom trabalho, Mané, você tem jeito pra cirurgia” (Deus me livre!). Fazemos mais umas 05 ou 06 suturas, os outros grupos também, meu instrutor fica o tempo todo me dando dicas importantes de como agilizar o trabalho sem prejudicar a qualidade e como me adaptar a alguns percalços, como os kits que ao invés de tesoura vinham com meia gilete para cortar o fio.

O tempo vai passando, os pacientes vão sendo substituídos, porém as macas continuam cheias, pelo menos as cadeiras na porta começam a esvaziar. Vou buscar outro kit para iniciar a próxima sutura e percebo que todos já foram usados. Viro para meu orientador que agora já tem nome (ouvi alguém chamá-lo na porta mais cedo) e digo: “Dr. Ricardo, o material de sutura acabou”. Ele retruca: “Não tem problema, daqui a pouco o pessoal da esterilização traz mais, faz curativo em todos enquanto esperam, para não deixar ninguém sangrando. Ah, e para de me chamar de doutor, estou no 6º ano ainda” (entendeu agora porque o termo médico estava entre aspas?).

Meus olhos ficaram maiores que os de uma lula gigante e, pálido, pergunto: “E quem é o cirurgião responsável pela sala?”. “Hoje é domingo, Mané, tá todo mundo dentro do centro-cirúrgico operando um acidentado após o outro. A gente toma conta da sutura. De tempos em tempos o residente de cirurgia vem dar uma olhada pra ver se tá tudo bem e caso algum pepino chegue até aqui, nós o chamamos pelo interfone”. Ainda estou boquiaberto quando ele me chama para aproveitar a pausa pra comer alguma coisa, já passam das 22h e só agora me toquei que não tinha comido, nem bebido nada, nem ido ao banheiro nas últimas horas.

Entramos no refeitório, uma sala enorme com mesas de metal tubular pintado de preto com tampo de fórmica branca e bancos fixos feitos do mesmo material (03 de cada lado) com quatro parafusos em cada um dos assentos com as cabeças arredondadas bem salientes, deixando o sentar suficientemente incômodo para evitar que sua refeição seja demasiadamente demorada.

Cerca de 20 mesas enchem o espaço que tem cheiro de café velho, desinfetante e um discreto odor de cigarro, revelando que, mais cedo, alguém tinha desrespeitado os sinais de não fumar espalhados por todas as paredes revestidas de azulejos amarelos claros. À esquerda vemos a linha de servir com balcões térmicos e réchauds que no momento estão vazios, mas devem ficar lotados no almoço. Sobre o vidro do balcão estão expostas duas bandejas, uma com pães franceses com margarina e outra com fatias de bolo de um tom marrom bem claro, lembrando muito o bolo de banana que minha mãe costuma fazer. Como eu não curto margarina, pego duas fatias de bolo e me dirijo ao final da linha de servir onde ficam três garrafas térmicas gigantes com cerca de cinco litros de capacidade cada uma, identificadas como “café”, “café com leite” e “chá” (Deus sabe do quê).

Sentamos em uma das mesas, eu, Ricardo, meus dois colegas e outro sexto-anista, Marcos, que é o primeiro a questionar nossa refeição: “De que é esse bolo?”. Antes de comer digo que parece de banana, já um colega meu diz que tem gosto de bolo de cenoura, mas marrom? Só se a cenoura estivesse podre! Comemos mesmo assim. O sabor do bolo é de farinha de trigo e essência de qualquer coisa bastante artificial que ninguém conseguiu determinar ao certo. O café era horrível, o leite era definitivamente desnatado de péssima qualidade e economizaram bastante no pó. Ao final do rango, não resistimos e procuramos a etiqueta que informava de que era o bolo, lá se lia: “Bolo de Chocolate”. Revoltado Marcos reclama: “Aonde que isso é bolo de chocolate? Essa etiqueta tá errada, tinha gosto de tudo, menos de chocolate”. Expressei-me dizendo: “Bem, até então na garrafa térmica tem escrito ‘café’”. Ricardo concorda: “O Mané tem razão, se aquilo é café, isso pode ser muito bem bolo de chocolate”.

Voltamos à Sala de Sutura, as cadeiras já estavam cheias novamente e algumas pessoas aguardavam também em pé. A sensação de tentar encher balde furado me abala. O material tinha acabado de chegar da esterilização, mesmo assim recomeçamos o processo “costurativo” com as pinças ainda quentes nas mãos.

Mais algumas horas se passam até o próximo break, que eu aproveito para bisbilhotar a clínica médica. Minha amiga medrosa do início do texto foi escalada para lá e agora, já aclimatada, descrevia efusivamente as diferentes patologias que ela tinha encontrado no plantão. “E você?” – ela me questiona. De repente suturar um bocado de gente me pareceu ainda menos interessante e relato minha insatisfação, mas ela me deu uma lição: “Não importa como você cura, o paciente chegou aqui sofrendo, abatido e desesperado e você resolveu o problema dele e o enviou de volta para casa sentindo-se melhor, isso é o que interessa”.

Eu ainda não tinha visto minha ação daquela forma, me atentava apenas ao ato mecânico de fechar feridas através de fios de nylon e nós estranhos que fazem você torcer seu punho várias vezes. Comecei a me sentir mais orgulhoso do que estava fazendo, percebi a dignidade daquela atitude curativa e de sua importância para aqueles que eu ajudava. Subitamente me senti mais leve e disposto, pronto para o resto da madrugada e no meio da minha contemplação ouço Ricardo me chamando: “Chegou material novo, Mané, vamos trabalhar!”. O plantão acaba sem ele ter me chamado pelo nome uma vezinha sequer.

EPÍLOGO

Janeiro de 1999, domingo quente de verão, por volta das 19h, chego ao HGE para meu primeiro dia do 3º ano do estágio de emergência. Estava no sexto ano de faculdade e obviamente chego com o carro do meu pai (não tenho dinheiro para ter carro próprio). Após estacionar, olho para a fachada imponente do grande hospital que me fita de volta com ar sorridente, quase posso ouvi-lo dizer: “Bem-vindo de volta!”. Adentro os grandes portões de metal e um maqueiro me cumprimenta: “E aí, Tapioca!”, ter nome marcante faz com que todo mundo saiba quem é você. Respondo com um sorriso e sigo para a Sala de Sutura (meu primeiro rodízio do ano é sempre lá). O cheiro horroroso da emergência ainda me enoja, mas sei que em 2 minutos vou me acostumar e não sentirei mais nada. Chegando ao local de trabalho vejo umas caras conhecidas, estudantes do 5º ano que iniciaram no ano passado, e três figuras novas, com seus jalecos impecavelmente brancos, maleta na mão e cara de “me tira daqui, pelo amor de Deus”. Dirijo-me a eles e me apresento: “Olá, meu nome é Vinícius, sou sexto-anista, portanto, não me chamem de doutor. Vocês sabem suturar?”, todos fazem que sim com a cabeça. Sorriu e digo “Isso nós vamos ver. Abram suas maletas e peguem uma caneta, o resto, podem deixar lá no Conforto Médico, pois não vão precisar”. Eles se entreolham e executam o comando dado, ao se aproximarem da porta eu os interrompo: “Ah, qual é o nome de vocês?”

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12 respostas para “H.G.Eca (os odores e sabores de um plantão de emergência)”

  1. Alan Daniel disse:

    hahahahahaha Excelente história. Do terror do primeiro dia, ao prazer de fazer o mesmo com novatos anos mais tarde. hahahahahahahaha

  2. Rnato disse:

    Excelente narrativa!
    Especialmente o final. Simples e genial!

    Bem vindo de volta, Dr. Tapioca!

  3. Liliana disse:

    Adorei Tapioca, e dou graças à Deus todos os dias por ser..engenheira :P

  4. Jaqueline disse:

    Maravilhoso o texto!!!
    Me lembra muito meus estágios… (sou técnica de enfermagem).

    Se o cheiro da emergência te enoja, imagine passar 24h por semana sentindo o cheiro de maternidade? Pq, meu caro, o pré-parto fede a merda mesmo quando está vazio…. :(

  5. Lêda disse:

    Esse é o meu menino. Que orgulho!Além de bom médico, excelente redator. Gostei demais,filho, parabéns, Sou mãe bsbona mesmo, e daí? Bjs.

  6. Roberto Tapioca disse:

    Valeu “Mané”; está aí uma pérola teatral!

    Um bom produtor, um palco e pronto. Sucesso

    absoluto. Bravo, bravo!!!

    Um beijo do seu pai.

  7. Carmen Menendez disse:

    Que maravilha! Vc me fez sentir o cheiro do hospital, o sabor “inigulavel” do bolo e o “desconforto” do conforto.
    Parabens, vc é um medico excelente e um magnifico escritor.
    Um beijão

  8. Ivana Patricia disse:

    Adorei o texto…muito interessante, engraçado e real!!! kkkkk …Parabéns Dr. Vinicius!

  9. Ricardo Ferro disse:

    Belo texto, Dr. Tapioca!
    Emocionei-me com o antepenúltimo parágrafo. Bonito. E divertido.
    Parabéns!

  10. Duduca disse:

    Vinícius querido,
    Que maravilha este, mais que narrativa ou relato, TESTEMUNHO.Como voce descreve com muitra sensibilidade, os fatos. Gostei das palavras de sua colega (que é uma verdade),e o último paragrafo, onde você responde ao meu intimo questionamento: “reforça a nossa identidadd.
    Qual o nome de vocês?” Como isso fortalece nossa identidade!!! Parabéns, Doutor! Deus lhe abençoe e lhe faça cada vez mais, este profissional sensível e humano.
    Tia Duduca

  11. Nathália disse:

    Tapioca, voce se superou… Excelente! Sou enfermeira e vejo muitos médicos assim, que não falam o nosso nome. Você caprichou na narrativa. Adorei. Parabens!!!

  12. Analy disse:

    Muitooooo legal! Li compulsivamente e consegui visualizar cada cena.

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