A velhice não é uma merda!

Vinicius Tapioca
@DrTapioca

Publicado em 07 de maio de 2014

Despertar às 6:30 da manhã é uma vitória, há 05 anos que eu sempre perco meu sono por volta das 4:30 e 5:00, cansei de levantar da cama antes mesmo do sol apontar no horizonte, mas desta vez a história é diferente, abro os olhos e vejo o brilho do sol se esgueirando por baixo da cortina, o sorriso é inevitável. Primeiro desafio vencido, vamos ao próximo: urinar. Ergo-me com dificuldade ouvindo os estalos das minhas articulações inferiores, começando pelo quadril, depois os joelhos e finalmente os tornozelos ao tentar colocar meus pés nos chinelos acolchoados de couro cor de café. Arrasto-me o mais silenciosamente possível, pois meu amor finge que dorme para que eu não me sinta culpado por acordá-la, entro no sanitário e me deparo com um homem de 74 anos com ralos cabelos grisalhos que se iniciam quase que no topo da cabeça, uma barba por fazer igualmente branca e um pijama comprido branco de listras azuis que me renderam o apelido de “banana de pijama” por parte dos meus netos. Ignoro meu reflexo e me dirijo ao vaso sanitário, na minha idade, urinar não é das tarefas mais simples, aponto meu pênis na direção correta e aguardo a boa vontade do jato urinário se apresentar, às vezes levam 10 ou 20 segundos, mas hoje parece que acordei antes da minha bexiga, demorou quase 5 minutos da hora que abaixei as calças até o último pingo saltar rumo ao infinito.

Durante o café da manhã, entre um comprimido e outro, vou tentando relembrar minha agenda do dia sem ter que recorrer ao aplicativo do smartphone que meu filho me convenceu a adquirir (nunca comprei uma maçã tão cara, ainda por cima mordida!). Minha esposa chega à mesa exuberante como sempre, mesmo septuagenária não perde a vaidade, trajando um vestido azul-claro transpassado, com manga 3/4 e uma faixa na cintura no mesmo tom com uma flor dourada fazendo as vezes de fivela, está pronta pra sair.

– Ainda não, preciso me maquiar e colocar minhas pérolas – retruca ela com um sorriso malicioso.

Termino o café e volto ao banheiro para terminar meus afazeres matinais: barbear-me, escovar os dentes e pentear o cabelo com um pingo de gel (mais que isso e fica tudo empapado). No quarto, visto uma calça de linho bege e camisa social bordô, pego minha “outra esposa”, uma bengala de madeira Indaiá com empunhadura escura e corpo claro separados por um anel de metal na parte superior e ponteira de borracha na outra extremidade, a haste apresentava uma plotagem personalizada com o título do filme “VELOZES E FURIOSOS” acompanhado de um carro esportivo vermelho em alta velocidade (presente de meu filho mais velho, o comediante). Sem Brasincaperceber começo a lembrar do meu Brasinca 4200GT de 170 cv, uma máquina daquela nas mãos de um “garoto” de 20 e poucos anos era uma insanidade! Minha sogra, na época, o apelidou de “Carruagem do Demônio”, talvez pelo tom vermelho sangue de sua carroceria de aço ou pelo ronco dos 6 cilindros nervosos saindo pelo escapamento customizado. Ela sempre pedia a proteção dos santos quando eu saía pra passear com sua filha, acendendo velas e tudo mais.

Bons tempos aqueles! Anos 60, empregado num excelente cargo na Secretaria de Administração do Estado graças ao pistolão do meu pai, grande produtor de cacau da região de Ilhéus e amigo íntimo do então deputado federal ACM. Ganhava muito mais que a maioria dos meus amigos que se apertavam nos bondes ou em seus Fuscas Pé de Boi.
Namorar naquela época era muito mais romântico, saíamos à tarde com as moças de família para passear na Rua Chile, tomar sorvete na Cubana, após subir o Elevador Lacerda, ou entrar na loja Duas Américas só pra subir e descer em sua moderníssima escada rolante (primeira da Bahia) e aproveitar pra beliscar alguma coisa na lanchonete do térreo que tinha vista para a Baía de Todos os Santos, onde podíamos desfrutar de um por do sol estonteante. Aproveitávamos então o início da noite e a penumbra para trocar carícias quase que infantis no ponto da Sloper, com sorte ganhava uma ou duas pitoquinhas e de 5 a 6 tapas por passar as mãos nas coxas dela. Às vezes íamos assistir um filme no Cine Guarani, sempre acompanhado do irmão mais novo da moça, defensor de sua honra e pureza.

Depois de devolver as namoradas às suas famílias, sempre antes das dez da noite, eu e os rapazes íamos extravasar a energia sexual acumulada durante o dia nos bregas ladeira da montanhada Ladeira da Montanha. Os mais famosos eram o 63, 65 e 67, chamados assim pelos números nas suas fachadas. Meu preferido era o “meia três”, onde sempre éramos bem acolhidos por Madame Carmen, uma senhora de seus 40 e poucos anos, muito maquiada, trajando um vestido flamenco preto e vermelho, os cabelos presos num coque adornado por uma falsa rosa vermelha exageradamente grande, segurando em suas mãos um leque também rubro-negro com um “rubi” de plástico na ponta. Ela jurava ter vindo de Madri, mas seu sotaque portenho deixava claro que tinha muito mais intimidade com os casebres coloridos do bairro de La Boca do que com os grandes edifícios do Paseo de la Castellana.

As meninas do “meia três” eram jovens e muito experientes, mas eu gostava mesmo era quando meu pai vinha à capital e me levava para os bordéis chiques como o que funcionava em cima da casa Duas Américas e, meu favorito, o saudoso Tabaris. Meu pai era amigo de Sandoval Caldas, proprietário do Tabaris, que sempre o recebia com entusiasmo e alegria. Também não podia ser diferente, meu pai costumava gastar com mulheres, whiskys e cubas libres em uma noite mais do que meu ordenado mensal. Sandoval sempre sentava em nossa mesa e contava casos escabrosos de suas festas particulares no “Galinha dos Pintinhos de Ouro”, um quarto reservado no piso superior do cabaré onde, ao final da noite, convidava os amigos mais íntimos para uma saideira com as melhores putas da casa. Garantia que meu pai já tinha ido lá umas duas ou três vezes, mas ele sempre negava, talvez com vergonha de mim.

Alta madrugada, já amanhecendo, descíamos para comer feijão no Mercado das Sete Portas ou na praça Castro Alves, o famoso Feijão do Zé do Muro. Víamos a cidade praça Castro Alves antigadespertar lentamente, os camelôs montando suas barracas, os bondes levando homens de terno e chapéu para seus escritórios, muitos notívagos voltando bêbados de suas aventuras no Anjo Azul, Monte Carlo, Maria da Vovó ou nos puteiros da Gameleira. Foi numa dessas manhãs de feijoada pós-coito que conheci Mário Kértesz e Nilo Coelho. Eles estavam voltando da “Ide” (o nome original era LÍDER, mas com o tempo o L e o R caíram do letreiro e o povo rebatizou a churrascaria/brega) e eu ajudei a separar uma briga do último com um policial a paisana (ambos embriagados) que quase termina em tiro, mas depois de uma boa conversa tudo ficou bem e o policial ao citar que era de Guanambi se descobriu parente de Nilo e aí os socos foram substituídos por abraços e lágrimas (só na Bahia). Mário e Nilo eram estudantes na época e confessaram que compravam roupas em São Paulo para revender aqui e juntar uma grana para gastar nos cabarés do centro da cidade, naquele momento eu jamais imaginaria que se tornariam, respectivamente, Prefeito de Salvador e Governador da Bahia.

Desperto dos meus devaneios na sala de espera do meu geriatra, sou o próximo a ser chamado e minha mulher decide esperar na antessala para me deixar mais à vontade durante a consulta (ou para continuar jogando buraco no seu iPhone). Já no consultório, o médico me tranquiliza sobre meu estado de saúde e diz que vou viver mais 30 anos, sorrio fingindo que acredito e volto para buscar minha esposa.

– E agora vamos pra onde? – Pergunta ela.
– Não sei, está cedo pra almoçar, que tal um coco verde?
– Pode ser, mas onde?
– Vamos ver. Vou dirigindo enquanto penso.

Saímos do centro médico localizado na Av. Garibaldi e seguimos em direção ao Vale do Canela, consigo ver nos olhos dela a decepção ao achar que estaríamos voltando Elevador Lacerdapara casa, na Graça, mas sua expressão muda ao perceber que sigo para a Av. Contorno onde a Baía de Todos os Santos nos saúda com um brilho maravilhoso vindo do reflexo do sol em suas águas tranquilas. Passamos pela frente da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia onde nos casamos há 45 anos, ao lado, ergue-se imponente o Elevador Lacerda que subimos tantas vezes para passear na Rua Chile.

– Pra onde estamos indo?
– Não sei, estou meio saudosista hoje, estava afim de dar uma volta.

Contorno o Mercado Modelo e sigo pela Av. Estados Unidos, Feira de São Joaquim, Calçada, Largo dos Mares onde a sua famosa igreja em estilo gótico nos deslumbra com sua torre de mais de 50m de altura. Lembro imediatamente do pequeno apartamento ali perto que morei na juventude e dos banhos de mar na Praia do Cantagalo. Passamos então pelo Largo de Roma e Av. Caminho de Areia em direção à Ribeira. É impressionante como casas centenárias dividem o espaço com novos mercados, concessionárias de veículos e construções recentes. Paramos no Largo da Ribeira e desço do carro com a dificuldade costumeira, empunhando minha bengala sport tunning. Os casarões antigos estão razoavelmente conservados, a família de minha esposa morava por aqui, lembro que costumávamos namorar à sombra dos tamarindeiros vendo os saveiros atracados na beira da praia e contemplando o pôr do sol, enquanto éramos vigiados por minha sogra sentada na porta de casa numa cadeira dobrável de madeira e lona, fingindo que tricotava.

Sorveteria da Ribeira– Não acredito que você veio até aqui só pra tomar uma água de coco!
– E quem falou em “água” de coco? – respondo apontando a Sorveteria de Ribeira – Foi aqui que nos conhecemos, lembra?
– Sim, óbvio, você era todo metido só porque tinha uma “Brasília” vermelha.
– Não era uma Brasília, mas deixa pra lá, quer um sorvete de coco verde?
– Claro!

Ficamos sentados próximos à praia, degustando o melhor sorvete de coco do mundo, vendo o mar banhar carinhosamente a península itapagipana, sentindo a brisa quente com cheiro de algas acariciar nossos rostos. A beleza daquela senhora, com seus cabelos grisalhos curtos em seu lindo vestido azul-claro com seu colar de pérolas e seu copinho de sorvete na mão, combinavam perfeitamente com o ambiente bucólico que nos cercava. Não resisto e pego minha “maçã de R$ 2.500,00” para tirar uma foto e publicá-la no Instagram, afinal de contas eu sou velho, mas não atrasado… e muito menos morto!

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3 respostas para “A velhice não é uma merda!”

  1. Carmen Menendez disse:

    Q delicia de cronica! Em alguns trechos quasi q podia “ouvir” a voz de Mario contando seus famosos casos. Mas, meu querido Doutor, sinto discordar de vc, a velhice, sim é uma merda…. tem algumas vantagens…., pagamos meia entrada quando vamos a algum espetáculo. Quando é respeitado, temos boas vagas para estacionar e….SÓ!!!! Mas, mesmo assim não tenho nenhuma pressa em “decolar para outro mundo”. Ė melhor ser velha q morta!!!!
    um beijão meu querido Dr Viniciu!

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