Publicado em 19 de julho de 2010
Essa crônica também poderia se chamar “A vingança dos magros”. De qualquer forma, eu não mereço, pois sempre fui um gordo legal em aviões. Buscava me limitar ao meu espaço, mesmo exíguo, para não incomodar os magros que sentavam a meu lado, mas tudo bem, a roda cármica não olha histórico de bom comportamento.
Tudo começou sexta-feira, quando embarquei em um voo para Portugal. Seriam 9 horas e meia até Porto. Já havia viajado na TAP duas vezes até hoje e sempre tive a sorte de conseguir viajar sem ninguém do meu lado, o que me permitia levantar o braço do banco e ficar um pouquinho mais confortável. Dessa vez não tive sorte, o voo estava lotado. As chances de conseguir viajar sem ninguém a meu lado eram ínfimas. Restava-me torcer para que o companheiro forçado de viagem fosse um magrelo mudo.
Ajeitar-me no banco foi uma tarefa relativamente fácil para um gordo acostumado com o design cruel dos assentos de avião. O primeiro passo é deixar o cinto de segurança sobre os braços da cadeira antes de sentar. Depois, ir já de costas na direção de sua poltrona para, com todo cuidado do mundo, ajeitar-se no pequeno espaço. Em seguida, o cinto deve ser estendido até o limite máximo, a barriga deve ser “puxada” e, com sorte, o cinto entra de primeira. Depois, é só ajeitar o tamanho correto e verificar se continua sendo possível respirar.
Enquanto lia sobre a missa de sétima semana do senhor Pica e Pica (sério!) no jornal português oferecido gratuitamente para os passageiros, vejo um gordo bigodudo um tanto esbaforido caminhando pelo corredor. Num rasgo de hipocrisia, comecei a pensar “Do meu lado não, do meu lado não!”. Ele sentou do meu lado, claro. E foi aí que cometi meu primeiro erro: Como sempre sou educado e deixo o magrelo ao meu lado se ajeitar, costumo ficar torto para que a pessoa se organize e depois, com a força imposta por meu tamanho horizontal, uso os dois braços. No reflexo, fiz o mesmo com ele, e o maldito gordo tomou conta dos dois braços! Fiquei torto até o fim da viagem.
Na hora de levantar voo, vem o clássico aviso de colocar os assentos na posição vertical. Só que meu banco não levantava de jeito nenhum (acho, inclusive, que posso ter danificado o joelho da passageira de trás quando o encosto de minha poltrona caiu velozmente contra minha vontade). Eu puxava o encosto, mas ele sempre voltava. Depois de uma bronca da comissária de bordo, descobri o que acontecia: como o botão para abaixar o banco ficava do lado de dentro do braço direito da cadeira e eu esmagava ambos os braços com minhas pernas, o botão estava condenado a ficar eternamente pressionado. Tive que ficar torto, quase em pé no limite do cinto de segurança até os avisos de apertem os cintos se apagarem.
O avião finalmente estava corretamente posicionado no ar e as horas começam a passar cada vez mais devagar. A TVzinha diante de mim mostrava o avião praticamente sem se mover. Achei que levaria três horas só para sair do Rio. Para diminuir essa situação, procurei o “controle remoto” (um negócio que mistura telefone, seletor de canais e controle de videogame). Olhei para tudo quanto é lado, mas não o encontrava. Finalmente descobri: colocaram o troço na parte de dentro do braço esquerdo. Tive que tirar o cinto e quase sentar no colo do gordo bigodudo (sem querer!) para conseguir pegar o controle. Quase desloquei o braço no processo, só para descobrir que todos os filmes eram grandes porcarias.
Claro que o gordo bigodudo também fez sua manobra para pegar o controle. E quase deslocou o meu braço ao fazê-lo. Depois de sobreviver a esse desespero e, com dificuldade, me ajeitar novamente no assento, os comissários entregaram os fones de ouvido. Mais uma vez, procurei o encaixe dos fones nos braços e descobri que, ao invés de colocarem na frente ou em cima, escolheram colocar (adivinhou!) no lado interno do braço. Além dos filmes serem ruins, eu ainda precisaria criar um hematoma em minha coxa para vê-los. Desisti de vez e fiquei ouvindo podcasts.
Estava quase sem espaço para as pernas, mas até conseguia movê-las levemente para os lados. Porém, algum corno que sentou na minha frente, abaixou o banco a toda velocidade e, além de quase perder meus joelhos, minhas pernas ficaram imobilizadas. Achei que teriam que me tirar com uma espátula daquele avião depois que as nove horas e meia de viagem terminassem.
Aí chegou a hora da janta. Depois de lutar por vários minutos contra o encosto do banco que teimava em ficar abaixado, puxei a mesinha, que teve um encontro emocionante com minha barriga. Em resumo, a mesinha não ficava reta. Tive que posicionar a comida de forma que não caísse, já que parecia que eu fazia um piquenique na encosta de um morro bem íngreme.
Não tenho do que reclamar da comida. Foi um franguinho com um molho estranho e pedaços de algo que parece cenoura, arroz, pãezinhos e uma sobremesa que podia passar por pudim. Já na hora das bebidas, pedi um refrigerante e recebi um copinho minúsculo. Conformado, sabendo que as bebidas sempre são assim, vi o gordo bigodudo pedir uma cerveja e receber uma lata inteira geladinha. Pô! Custava me dar uma lata inteira de Coca-Cola também?
Como estava só com o movimento de um braço e meio, comi de uma maneira que não posso explicar porque todas as comparações que me vieram à mente são politicamente incorretas demais e não quero ser processado. Basta dizer que eu tinha que abaixar a cabeça com a boca aberta enquanto invertia meu braço que segurava o garfo de uma maneira bastante rápida para a comida não cair nesses poucos segundos. Se caísse, só a veria novamente quando o avião pousasse.
O gordo bigodudo comia com mais tranquilidade, já que conseguira ocupar o “espaço gordo” antes de mim. E, sem nenhum cuidado, cortava seu pão na minha direção, me cobrindo de farelos. Ele ainda pediu uma segunda cerveja, no que foi atendido! Revoltado, pedi uma segunda Coca. O comissário, bastante solícito, me deu um outro copo. Com refrigerante quente e sem gelo! Enquanto o gordo bigodudo tossia cerveja em cima de mim!
Aí vem a hora de dormir. Não para mim, claro, já que raramente consigo dormir em aviões. O gordo bigodudo ainda lia atentamente seu livro nessa hora, usando meu antebraço como um anteparo não-autorizado para seu livro. Depois, ele resolveu dormir. Colocou um tapa-olhos e caiu num sono profundo rapidamente… deixando a porcaria da luz de leitura ligada em cima de mim! E a luz só podia ser apagada com o “controle remoto” dele, que estava no braço interno. Qualquer tentativa minha de apertar o botão para apagar a luz fatalmente seria entendida como assédio sexual, já que a perna dele cobria todo o aparelho.
Sem dormir, sem me mover e mal conseguindo respirar, fiquei a madrugada inteira me protegendo dos movimentos do gordo bigodudo durante seu sono (muito medo dele jogar sua cabeça em meu ombro – felizmente não aconteceu) e olhando o aviãozinho na TVzinha movendo-se milímetros sobre o Oceano Atlântico. Minha maior diversão era calcular mentalmente quantos quilômetros faltavam a cada minuto, comparando minhas apostas com o que aparecia na tela. Não preciso dizer que as horas se arrastaram mais lentas do que uma tartaruga hippie.
Chegou uma hora, porém, que eu precisava ir ao banheiro. Tive que acordar o gordo bigodudo para ele me dar passagem. Levei um tempo enorme para conseguir. Felizmente, ele era espaçoso, mas era relativamente educado e me deu passagem. Estava com tanta dor nas pernas que caminhava de maneira mais bizarra que meu sobrinho, que acabou de aprender a andar. A emoção foi tanta que quase chorei. Depois de fazer xixi, ainda fiquei um tempão no banheiro lavando as mãos só para adiar o momento em que voltaria para meu assento.
Depois de mais um pouco de sofrimento, faltando mais uma excruciante hora para o pouso, resolveram servir o café da manhã (ou pequeno-almoço, já que era um avião português). Mais uns pãezinhos, um salgado com recheio de ricota bem aceitável e uma xícara de café aguado. Novamente, muito farelo de pão jogado em mim pelo gordo bigodudo, mas era o último sacrifício antes de finalmente chegar à prometida terra lusitana.
O avião pousou, várias pessoas levantaram antes mesmo dele parar como se precisassem sair desesperadas quando a porta abrisse (provavelmente eram brasileiros). Esperei o gordo bigodudo sair, peguei minha mochila e saí feliz do avião. Cheio de dor nas pernas a ponto de ter cogitado pedir a cadeira de rodas emprestada, mas fui caminhando pra não correr o risco de empenar o veículo com meu peso. Até encarar a enorme fila do passaporte e a incrível demora na esteira de malas foram alentos diante da visão do gordo bigodudo tornando minha viagem um verdadeiro tormento!
Depois dessa experiência aprendi uma lição para a vida toda. Tanto que torço para que no voo de volta sente um magro ao meu lado, pois assim terei a oportunidade de pôr em prática o que agora sei: Ser a pessoa que incomoda é muito mais relaxante. Só não vou jogar farelo de pão no sujeito porque não desperdiço comida.
Hauhauhauha!
Senti um misto de pena, dor e alegria com esse post!
Aposto que durante essas horas esmagadoras você pensou em comprar duas passagens na volta só pra garantir né?
Lendo este post me senti mais animado para encarar a minha esteira de hoje…emagrecer é melhor viu! =D
Lúcio:
Sorri muito,mas também fiquei com muita pena de vc.Imagino o seu sofrimento.Parabéns pelo seu texto,muito bom…
"Não preciso dizer que as horas se arrastaram mais lentas do que uma tartaruga hippie."
Valeu o post todo. =D
Hilário! Um dos textos mais divertidos que já li, meus párabens! Já passei por uma situação idêntica, hj não mais pois emagreci 47kg até agora. Espero que todos que tenham o mesmo problema emagreçam também.
Um forte abraço.
Putz, tio Lúcio, texto muito interessante, quase deu pra "reviver" suas desventuras com o bigodudo. Sinto muito por você; me deu até medo de viajar de avião, agora. A única exceção é Ibiza (breve!), o Pânico na TV! me deu bastante inspiração pra ir lá no verão do ano que vem, hehehehe. Parabéns pelo post
ADOREI !
morri de rir e de compaixão e empatia !
já fui várias vezes a gorda incômoda e incomodada tentando se espremer em uma cadeira ridicula de pequena da classe econômica…
:)
muito bom o texto !
Confesso: eu ri… hahaha
[…] O gordo-alfa Rocambolândia […]
[…] que neste caso não restam dúvidas de quem foi o “gordo alfa“ durante o […]
[…] Crônica originalmente publicada em 19 de julho de 2010 no Papo de Gordo. […]