"A gosto"

Conrad Pichler
@Conrad_Pichler

Publicado em 08 de agosto de 2009

Caminhando pela megalômana cidade de São Paulo, arrumando alguns lugares diferentes para comer, Conrad Pichler observa e conspira, aliás, inspira-se para contar-nos algumas crônicas; a comida é apenas o acompanhamento. Esperamos que você divirta-se (e emocione-se, por quê não) com causos, personagens, cenas do dia-a-dia experimentadas por um de nossos pesos-pesados. Seja sempre bem-vindo. Na coluna “Purê de Letrinhas”, o prato principal é a poesia.

Purê de Letrinhas, por Conrad Pichler

“O que vai comer hoje?”, pergunta, “Oi, Seu Luís, eu ainda estou escolhendo” é o que eu sempre respondo, “Pode escolher, não tem pressa…”, diz esse senhor português enquanto me serve o pãozinho, azeite e sal, a minha entrada, saboreados sem pressa, como tudo o que me acontece em volta.

Esse é um típico restaurante sujinho ou pé-sujo de São Paulo; eu acho até que é dos mais típicos: balcão, banquetas fixas ao redor, uma espécie de coletivo que come, foi isso que os italianos anarquistas trouxeram para cidade em meados do século XIX. E ficar com a bunda quadrada, uma perna formigante e a outra dormente faz parte da diversão de ir comer um bacalhau no Seu Luís.

Sexta-feira é dia de bacalhau. O lugar enche rápido e fica assim toda tarde, eu mesmo esperei por dez minutos para sentar e levei mais alguns para achar uma posição confortável no banquinho de frente com o balcão. Tempo suficiente para ver aquele mesmo engravatado de toda semana, sentado adiante, o homem que ajusta os óculos, coça o cavanhaque, enquanto palita os dentes. O mundo não tem mistérios no balcão coletivo: o engravatado saca uma foto e mostra ao Seu Luís, é o neto que vive na França, “Ele recebeu o caminhãozinho, olha que bonito”; ele fala do caminhão ou do neto? O Seu Luís, além de cuidar de uma pequena adega sob sua casa (“Fui eu quem construiu, tem muito vinho bom”, me disse), preparar o arroz-doce (com um ingrediente especial que ele me contou) e o tempero do bacalhau, Seu Luís faz caminhõezinhos de brinquedo com timidez e seriedade.

Esse caminhãozinho me deixa entretido, carregando os dois senhores de cabelos grisalhos falando sobre netos, filhos, tempo; tudo em três minutos. Eu revisito meu avô em Ferraz, nesse instante de memória. O senhor engravatado chora um pouco, balançando o copo de vinho, recitando, enquanto escreve uma dedicatória em francês no verso da fotografia. Seu Luís diz que vale mais isso do que muita coisa, aquela foto, a dedicatória, algumas lágrimas e memória são mais caras do que o pagamento pelo brinquedo. A foto é guardada junto à foto da primeira turma do Restaurante Ita, de 1957, pregada na cruz de malta dos ladrilhos. O engravatado sai abanando o braço. Seu Luís para um instante…

Mas, alguém do lado de cá do balcão pediu um suco médio de laranja, no momento exato que Seu Luís precisava chorar um pouco, ele se afasta, fica ali atrás da pilastra, enxugando os olhos, enquanto o Fabinho finge que não vê e espreme as laranjas. Acho que todo mundo finge que não vê, faz parte de um exercício coletivo para manter a dignidade antiquíssima daquele senhor português.

Seu João, o irmão extrovertido do Luís, faz um sinal de ombro, para eu não ficar reparando tanto na timidez severa do irmão; enquanto distraio, ele sorri para uma morena linda, ela também sempre está aqui, sempre ganha uma bala e duas palavras furtivas do Seu João.

Pelo que vejo aqui de três em três minutos, esses dois irmãos portugueses adoraram esse trabalho, ainda que reclamem sempre disso ou daquilo. Cada prato feito, das dezenas de opções dependuradas na parede, tem muito “gosto”, tal e qual o cardápio recitado: “Bacalhau são de três tipos a gosto, ao forno (aquele com molho a gosto), à portuguesa e Gomes de Sá”, “Como é esse último?”, “Aquele desfiado, que você rega com azeite a gosto por cima”.

Sexta-feira é dia de bacalhau no Seu Luís, são três tipos a gosto. Pode escolher, não tem pressa.

Se você está ou um dia estiver em São Paulo, visite o mais paulistano dos restaurantes de balcão, o Ita fica na Rua do Boticário, ao lado do Largo Paissandu.

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5 respostas para “"A gosto"”

  1. Carolina disse:

    Agora que li esse texto vou ter que quebrar a dieta e ir nesse lugar.

  2. Elder Tanaka disse:

    Conrad provando que escreve muito melhor do que conta piadas. Tá anotado o endereço do Ita. Aguardo novas dicas.

  3. Camila Dias disse:

    Ah, se eu gostasse de bacalhau ia lá chorar um pouco…
    Bem vindo às colunas PdG, Conrad! Era isso mesmo que tava faltando pra abafar aquelas receitas gororobérrimas das 5as feiras, hahahaha (não conta pro autor!!!)
    Abração!

  4. Olá, gente boa!

    Primeiramente, quero agradecer os comentários, fiquei muito feliz de recebê-los!

    Carolina: ressalva seja feita, o termo pé-sujo se aplica bem ao lugar, mas eu como lá toda semana, às vezes, mais de uma vez e nunca me aconteceu nada (de ruim, de bom sempre acontece alguma coisa!)

    Elder: Obrigado pelo elogio, mas qualquer coisa que eu faço é melhor do que contar piadas, então fica fácil! ;) (a ressalva que fiz pra Carol, vale pra você também, rs)

    Camila: Lá no Seu Luiz tem de tudo um pouco, na quinta-feira tem uma carne assada com molho madeira que é fantástico! Se pedir uma taça do Porca de Murça (o vinho da terra portuguesas com certeza) você vai ver que é de chorar mesmo, mas de felicidade (e custa R$12,00)

    Abraço a todos e mais uma vez, obrigadão!

  5. Emerson disse:

    Perspicaz, meu caro, sempre perspicaz.

    Salve salve senhor cronista.

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